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A EXPERIÊNCIA DO MANDATO AGROECOLÓGICO

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Florianópolis e seu protagonismo em legislação ambiental

A parede de vidro é uma barreira dura e fria, contrasta com o calor e o colorido dos que ela segrega, estes chegaram aos montes e vieram a convite, com certeza não sabem como se portar nesse ambiente. A parede é vista como uma aberração, alguém menciona que parece um aquário, outro diz que é uma vitrine. “Estamos em exposição?”, todos riem. São expansivos, festivos e barulhentos, batem no vidro e são repreendidos, o espaço reduzido da antessala do plenário da câmara não estava preparado para um grupo tão heterogêneo. Mas hoje é o dia deles, um dia de homenagens a quem contribui para ações de ecologia na cidade. O reconhecimento é simbólico, mas a ocupação é efetiva, nos últimos quatro anos, Florianópolis tem construído políticas públicas pautadas pela ecologia. 

 

Neste curto período, a câmara de vereadores aprovou leis que regulamentam as ações do executivo e alimentam iniciativas ecológicas diversas. Um dos efeitos mais recentes e representativos desse momento é o anúncio de que os resíduos orgânicos da cidade de Florianópolis serão destinados à reciclagem e compostagem. Uma ação que causa uma mudança concreta na relação de Florianópolis com o seu “lixo”. A medida é motivada por força da Lei da Compostagem (10.501/ 2019) que estabelece a obrigatoriedade desta adequação até 2030.

 

As leis que têm provocado essas mudanças são de autoria do Mandato Agroecológico, atualmente representado pelo Vereador Marquito, que menciona a importância dessas leis e da necessidade de manter-se atento para que elas realmente se tornem políticas públicas efetivas da cidade de Florianópolis. “A transição de uma Lei para sua efetivação como política pública é um processo sensível, precisa ser acompanhado com cuidado”. 

 

O pessoal de dentro do aquário também pôde ir à tribuna, pegar o microfone e dizer o que pensam, agradecer e afinal: mandar derrubar a parede de vidro. Expressam um sentimento de conquista vivido pela cidade, relacionado a uma trajetória histórica em que diferentes ações descentralizadas foram encontrando formas de se reunir, estabelecer diálogos e fortalecer uma rede de pessoas e entidades ligadas à ecologia. 

O Mandato Agroecológico é um dos pontos de articulação de toda esta rede. Ainda no seu primeiro ano (2017), aprovou a Lei que estabelece as bases para a Política Municipal de Agroecologia e Produtos Orgânicos, o PMAPO. “Foi nosso primeiro projeto de lei protocolado e a construção foi realmente muito bonita... chamamos muitos coletivos para escrever o projeto, especialmente a Rede SEMEAR” comenta André Farias, integrante do Mandato.  

 

Criada em 2015, a Rede SEMEAR tem funcionado como uma espécie de fórum municipal de agricultura urbana. Anualmente promove o Encontro Municipal de Agricultura Urbana, EMAU, que mobiliza os diferentes agentes envolvidos com o tema em debates que resultam na carta política do encontro. Estes encontros e suas repercussões políticas deram origem ao Programa Municipal de Agricultura Urbana, o PMAU.

 

O espaço físico da articulação do mandato, o gabinete do vereador Marquito, também não é nada convencional. Ali, as paredes foram literalmente derrubadas e as que sobraram foram pintadas com desenhos floridos, o vereador não tem uma sala particular, há plantas e até uma biblioteca de sementes para doação, o que favorece a circulação de pessoas “Tem gente que vem até aqui só para buscar um punhado de sementes crioulas agroecológicas”, comenta Marquito.

Neste espaço, reuniu-se boa parte dos agentes dessa rede agroecológica, sentiram-se acolhidos por estarem em um lugar tão agradável e fortalecidos por saberem que este é um oásis em meio ao deserto legislativo. Lá em baixo, o vidro continuaria de pé, mas talvez por pouco tempo.

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JOSE BOITEUX. Seminario do campo a mesa

A CONSTRUÇÃO DAS REDES DE PENSAR FORA DA CAIXA

Como Florianópolis se transformou em um ecossistema propício à agroecologia

Quem visita Florianópolis, com certeza, passa pela Avenida Beira- Mar Norte, com o mar de um lado e grandes prédios do outro, um cenário que representa o espírito urbanista que rege Florianópolis desde a década de oitenta: uma cidade moderna, com infraestrutura para muitos carros e empreendimentos. 

 

Mas enquanto surgia essa cidade moderna, pronta para um futuro desenvolvimentista, outras iniciativas eram cultivadas. Na década de 70, a Universidade Federal de Santa Catarina cria o Centro de Centro de Ciências Agrárias, que hoje é referência tanto para formação de pesquisadores quanto para reunir ações em torno da agroecologia na cidade e no país. Com trabalhos intensos com a formação, pesquisa e extensão, estabelece convênios e parcerias com diferentes entidades, instituições públicas, privadas e ONGs, conectando conhecimentos científicos e práticos à realidade das regiões catarinenses.

 

Paralelamente, um grupo de pequenos agricultores e técnicos agrários preparava-se para resistir às dificuldades que o processo de urbanização representaria para pequenos agricultores familiares em todo o Estado. Assim nasceu o Cepagro, Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo, que a partir da década de 90 passa a formar redes produtivas, compor espaços deliberativos e a promover outras ações práticas.  A atuação do Cepagro é diversificada, estendendo-se sobre a agricultura urbana, desenvolvimento rural sustentável, educação agroecológica e gestão de resíduos. 

 

Neste ambiente favorável, o professor Paul Richard Muller desenvolve o método UFSC de Compostagem, compostagem termofílica em leiras estáticas de aeração natural. O método é uma adaptação às condições climáticas da região, é prático e passa a ser utilizado em grande escala. Com este método, a UFSC chegou a ter o maior pátio de compostagem dentro de uma universidade, compostando cerca de 5 toneladas de resíduo orgânico por dia. 

 

Mais tarde, em 2008, agentes comunitários da comunidade Chico Mendes, em Florianópolis, com o apoio técnico do Cepagro, mobilizaram os moradores a separarem o resíduo orgânico e destiná-lo à compostagem, utilizando o método UFSC. A motivação era grande, há alguns meses uma infestação de ratos havia tomado conta do bairro e duas pessoas morreram, contaminados por leptospirose. 

 

Assim começou a Revolução dos Baldinhos, uma iniciativa que, ainda hoje, atende 150 famílias que separam o seu resíduo orgânico, destinando-o à compostagem. Por mês, são coletadas cerca de 8 toneladas de resíduo orgânico. Do produto desse tratamento, tem-se o composto orgânico que retorna aos participantes do projeto para a promoção da agricultura urbana. 

 

Hoje, o projeto tem uma atuação autônoma e independente, é coordenado pela agente comunitária Cíntia Aldaci, moradora da comunidade e já foi apresentado em países como Itália, Alemanha e em diversos congressos brasileiros. Em 2013, o projeto ficou em segundo lugar no Prêmio Tecnologia Social da Fundação Banco do Brasil, sendo reconhecido para ser replicado em empreendimentos do Programa Minha Casa, Minha Vida, do Governo Federal.

 

Assim, as iniciativas de agricultura urbana nas comunidades de Florianópolis revelam duas coisas: em primeiro lugar, que o encontro de conhecimentos científicos e práticos, a partir do trabalho de agentes comunitários, pesquisadores, professores e instituições como a UFSC e o Cepagro, tem promovido práticas ambientais coerentes; em segundo lugar, que a construção e preservação de um tecido social é necessária para sustentar ações populares de impacto social.

 

Em 2019, a partir de Edital de Subvenção Social, o Mandato Agroecológico indica o Instituto Çarakura para gerenciar o fomento às iniciativas de compostagem no município, envolvendo também a Revolução dos Baldinhos (Monte Cristo) e a Horta do Pacuca (Campeche) na criação da Rede Municipal de Gestão Comunitária dos Resíduos e Agricultura Urbana de Florianópolis,  coletivo que passa a oferecer formação às lideranças comunitárias em comunidades, como:  Morro do Mocotó, Morro do Quilombo, e Morro da Queimada, além de da Moradia Estudantil da UFSC.

 

Distante das imagens do passeio urbano pela avenida Beira mar, a cena dos agentes trabalhando na compostagem retrata uma outra perspectiva de urbanismo, mais sustentável e inclusivo. Também revela como essas redes têm se construído em Florianópolis, com ampla participação popular e envolvimento de ONGs, universidades e outras instituições.

 

Reconhecer a construção dessas redes e encontrar meios para fortalecê-las é o que o Mandato Agroecológico tem buscado fazer, em diversas frentes de atuação. Para sustentar esse trabalho de forma estruturada, o Mandato Agroecológico já aprovou mais de 10 leis e duas emendas orçamentárias nos últimos 4 anos, sempre envolvendo os principais interessados em construções políticas participativas.

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OS MUITOS NÓS DO TECIDO SOCIAL

Como colaborador do Cepagro, Marquito teve um importante papel na criação e desenvolvimento do projeto Revolução dos Baldinhos. Uma experiência decisiva para sua formação, pois além de trocar conhecimentos sobre agronomia, também pôde experimentar a importância da construção de vínculos entre os diferentes agentes de uma ação como essa: comunidades, voluntários, ONGs, instituições de ensino e agentes públicos. Essa experiência seria mais tarde levada a outros espaços em que Marquito também esteve presente, como:

  • Presidente do CONSEA/SC - Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional de Santa Catarina (2012 a 2016);

  • Vice coordenador do Fórum Catarinense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos;

  • Coordenador de Agricultura Urbana do CEPAGRO – Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (2006 - 2016)

  • Conselheiro da Associação Slow Food Brasil (2014 – 2017)

Em 2015, fez parte do grupo de colaboradores do Cepagro que assumiu a Cogestão do Camping do Parque Estadual do Rio Vermelho. Nessa ocasião, interagindo e estabelecendo vínculos, formou-se um grupo que pensava em impulsionar a agricultura urbana de Florianópolis reunindo as diferentes iniciativas em uma grande rede, a Rede Semear. 

 

Rede, coletivos, tecido social, são palavras constantemente mencionadas pelo Mandato Agroecológico para definir a base da sua atuação, pois embora exista a figura de um
Vereador à frente do Mandato, este é visto como mais um dos nós que estruturam uma rede.

 

Por isso, a eleição de um Vereador que faz parte dessas redes permite um novo tipo de relacionamento com o poder público. Propondo leis e fiscalizando o trabalho do executivo, mas ainda em contato estreito com as redes de luta popular, colocando-as no centro do processo de construção das propostas. Por isso, tantas frentes de trabalho puderam ser fortalecidas, como: agricultura urbana, a luta pelos direitos da Natureza, a luta contra os agrotóxicos, o apoio à maricultura e à pesca artesanal, apoio aos cervejeiros artesanais, à economia solidária, à casa de parto natural e aos migrantes. 

 

Tendo em vista que a maioria dos vereadores da cidade apoia irrestritamente a continuidade do projeto desenvolvimentista, o sucesso na construção de tantas leis e projetos pautados pela ecologia e justiça social precisa ser considerado a partir da influência da participação da sociedade nesse processo. Como afirma Marquito “ Existe um tecido social que sustenta nossas ações”.

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AS SOLUÇÕES QUE A AGROECOLOGIA LEVOU À CÂMARA

Legislar, criar leis que definam nitidamente como o poder público deve agir para garantir direitos, essa tem sido a tônica do Mandato Agroecológico ao longo dos seus quatro anos de existência. 

Embora o trabalho de um vereador também esteja relacionado com a resolução imediata de problemas localizados, como um buraco que se abre na rua, boa parte de nossos problemas são estruturais e exigem planejamento e criação de leis que obriguem o poder público a garantir direitos. Nesse sentido, o Mandato Agroecológico tem sido o mais atuante dentro da câmara de vereadores.

Há diferentes tipos de leis que devem se relacionar de maneira harmônica para formar uma estrutura legislativa competente. Assim, o Mandato participou da construção de leis que estabelecem novas perspectivas, como:

  • Emenda à Lei Orgânica. Dos Direitos Da Natureza (PEL 00089/2018) que defende que a natureza seja vista para além de uma fonte de recursos naturais e seja respeitada em seu direito de existir, assim incorpora a titularidade de direito à natureza.

  • Política Municipal de Agroecologia e Produção Orgânica (Lei 10.392) que afirma a necessidade e estabelece diretrizes para promoção de uma transição agroecológica e orgânica, contribuindo para o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida da população, por meio do uso sustentável dos recursos ambientais e da oferta e o consumo de alimentos saudáveis.

  • Lei de compostagem (Lei 10.501). Altera a forma de Florianópolis tratar seus resíduos orgânicos, determinando que o composto orgânico deve ser destinado à compostagem, estabelecendo uma relação ambiental sustentável e a possibilidade de renda para quem composta o resíduo e ainda pode comercializar o seu produto como fertilizante do solo.

  • Floripa Zona livre de Agrotóxicos (Lei 10.628). Mantendo a coerência com a defesa pela qualidade de vida e sustentabilidade dos sistemas naturais, Florianópolis proíbe o uso e armazenamento de agrotóxicos. A medida também valoriza os pequenos produtores orgânicos que desenvolvem culturas livres de agrotóxicos a manterem sua produção.

  • Lei da Pesca e Maricultura Artesanal (Lei 10.728). Cria condições para a venda direta de pescados frescos provenientes de pescadores artesanais e maricultores familiares para restaurantes e similares.

  • Lei da Maricultura (Lei 10.394). Declara a Maricultura Familiar, a pesca artesanal e o extrativismo do berbigão, como atividades de interesse social e econômico e estabelece as condições para seu desenvolvimento sustentável.

  • Política de Fomento à Economia Solidária (Lei 10.176). Busca ampliar a Política Municipal de fomento à economia solidária de Florianópolis garantindo espaço para a comercialização de produtos e recursos para a sua promoção.

  • Cervejeiros Caseiros Profissionais e Nanocervejarias (Lei 10.578). Reconhece as atividades dos cervejeiros caseiros e das nanocervejarias em Florianópolis.

  • Política Municipal Para População Migrante (lei 10.735). Estabelece direitos e os deveres do migrante, tendo como princípios a universalidade, direitos humanos, a prevenção à xenofobia e ao racismo, entre outros.

  • Dia Municipal dos Defensores e Defensoras dos Direitos Humanos (10.482).  Estabelece o dia 14 de março, dia do assassinato de Mariele Franco, como o dia municipal dos defensores e defensoras dos direitos humanos. 

A aprovação de tantas leis revela uma visão ecológica profunda, que se preocupa com a preservação ambiental na mesma medida em que defende a justiça social e a garantia de direitos. Percebe-se que da conservação da natureza à economia solidária há toda uma rede de propostas que oferecem respaldo para pensar a cidade a partir de um novo ponto de vista. Mas depois de aprovadas as leis, começa um novo capítulo de desafios.

GREENWASH: A JARDINAGEM DO EXECUTIVO

Embora as sanções das leis ambientais encaminhadas pelo Mandato Agroecológico sejam animadoras, a transição das ações legislativas para a sua efetivação como políticas públicas é um processo sensível. Uma vez que a lei sai da câmara, depende do executivo para ser sancionada, regulamentada e aplicada e em todas essas etapas há recursos para que o executivo retire da lei seu efeito prático.

Neste sentido, ao menos dois movimentos perigosos precisam ser reconhecidos: o primeiro é chamado de Greenwash, um banho verde, uma forma de melhorar a imagem apoiando questões ecológicas, mas sem se comprometer com a causa de maneira estrutural, o segundo está relacionado à desarticulação das redes, buscando desfazer o tecido social que dá sustentação às lutas democráticas.

O trabalho de construir redes com pessoas, coletivos e instituições envolvidas com ecologia foi longo e intenso e desse processo, com a participação da Rede SEMEAR, conseguiu-se provocar a criação do Programa Municipal de Agricultura Urbana - PMAU. O PMAU mantinha relação direta com a Rede SEMEAR e permitia o reconhecimento de quem esteve envolvido no processo. Recentemente, o PMAU foi revogado pela prefeitura que então criou um novo programa com justificativas semelhantes ao PMAU, mas sem dialogar com as redes. 

A Lei da Compostagem passa por situação semelhante, embora seja ela que obriga o poder público a agir e adequar suas ações, em nenhum de seus comunicados a prefeitura menciona a lei que é reconhecida nacionalmente por seu caráter inovador, uma lei inédita e transformadora que não tem visibilidade nas ações que ela mesma motivou.

As primeiras ações da prefeitura, no sentido de adequação às exigências dessa lei, também revelam a necessidade de acompanhamento de uma lei até sua efetivação como política pública. A Lei da Compostagem prevê que se retire do poder público o encargo de encaminhar os resíduos para aterros sanitários, mas também que o serviço de compostagem, feito por cooperativas, associações e agentes comunitários, oferece para o município um serviço que é muito mais valioso que o serviço de saneamento, qualificando-se como serviço ambiental. 

Por isso, a proposta é que este trabalho seja remunerado desta forma: como serviço ambiental. No entanto, a Prefeitura anuncia o edital para pagamento por serviço de compostagem associando-o ao serviço de saneamento. Desta forma, mantém os valores e o modelo de negócio associados ao que se pratica hoje em relação ao serviço de saneamento baseado em aterros sanitários, um modelo que hoje é privatizado pela prefeitura.

Essa prática ignora que a reciclagem da matéria orgânica pela compostagem, privilegiando cooperativas, associações e agentes comunitários, tem valor associado à ecologia, à preservação e educação ambiental e à justiça social. 

Programas e leis construídos com o povo, em anos de trabalho envolvente, precisam ser desconstruídos ou invisibilizados para que o executivo possa figurar como protagonista. Assim, é possível criar suas próprias ações, e uma vez que estas ficam livres da relação orgânica que amarra política e mobilização popular pode-se tomar outro rumo. Uma renovação política acontecerá quando este ciclo for quebrado e a mobilização de base popular puder subir ao poder institucional mantendo as pontes intactas e a participação democrática efetiva. Neste dia, teremos, enfim, derrubado a parede de vidro.

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